segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A Irmandade da Boa Morte





A Irmandade da Boa Morte é uma confraria religiosa afro-católica brasileira.A história da confraria religiosa da Boa Morte se confunde com a maciça importação de escravos da costa da África para o Recôncavo canavieiro da Bahia, em particular para a cidade de Cachoeira, a segunda em importância econômica na Capitania da Bahia durante três séculos.
O fato de ser constituída apenas por mulheres negras, numa sociedade patriarcal e marcada por forte contraste racial e étnico, emprestou a esta manifestação afro-católica, como querem alguns autores, notável fama, seja pelo que expressa do catolicismo barroco brasileiro, de indeclinável presença processional nas ruas, seja por certa tendência para a incorporação aos festejos propriamente religiosos de rituais profanos pontuados de muito samba e comida. Há que acrescentar ao gênero e raça dos seus membros a condição de ex-escravos ou descendentes deles, importante característica social sem a qual seria difícil entender tantos aspectos ligados aos compromissos religiosos da confraria, onde ressalta a enorme habilidade dos antigos escravos para cultuar a religião dos dominantes sem abrir mão de suas crenças ancestrais, como também aqueles aspectos ligados à defesa, representação social e mesmo política dos interesses dos adeptos.
Como todas as confrarias religiosas baianas, a Irmandade da Boa Morte possui uma estrutura hierárquica interna para gerir a devoção diária e doméstica de seus membros. A direção é composta por quatro irmãs responsáveis pela organização da festa pública de agosto e substituídas anualmente. No topo da administração da vida da Irmandade da Boa Morte está a Juíza Perpétua, posição de maior destaque e atingida por status adquirido, ocupada pela mais idosa adepta. A seguir, situam-se os cargos de Procuradora-Geral, Provedora, Tesoureira e Escrivã, estando a Procuradora à frente das atividades executivas religiosas e profanas. Para serem aceitas as noviças, além de estar vinculadas a alguma casa de candomblé - geralmente Gêge, Ketu ou Nagô-Batá, na região - e professarem o sincretismo religioso, deverão se submeter a uma iniciação que impõe um estágio preparatório de três anos, conhecido pelo nome de “irmã da bolsa”, aonde é testada a sua vocação.
Uma vez aceita, poderá compor algum cargo de diretoria e a cada três anos ascender na hierarquia da Irmandade. Não é demais lembrar que todas dividem irmanamente as atividades da cozinha, coleta de fundos, organização das ceias cerimoniais, das procissões do cortejo, além dos funerais das adeptas seguindo os preceitos religiosos e uma determinação estatutária tácita. As eleições são realizadas anualmente procedendo-se a apuração dos votos pelo curioso sistema de contagem de grãos de milho e feijão, indicando a primeira atitude de rejeição e o segundo aceitação. Em que pese as diferenças hierárquicas e os preceitos relativos a cada posição, todas as irmãs estão niveladas como empregadas de Nossa Senhora. Além de irmãs de devoção, são algumas vezes, irmãs de santo e quase sempre “parentes” - os africanos e seus descendentes no Brasil alargaram o conceito de parentela estendendo o vínculo a todos aqueles que são filhos de uma mesma nação. É notável como a ancestralidade africana se reelabora no interior das instituições religiosas baianas e como as irmandades leigas acabam prestando renovado serviço a esse processo de intercurso cultural. É admirável que, a propósito de celebrarem a morte, essas mulheres negras cachoeiranas tenham sobrevivido com tanta majestade e garbo. O mais incrível é que o sistema de crenças tenha absorvido com tamanha funcionalidade e criatividade os valores da cultura dominante, realizando, em nome da vida, complexos processos de apropriação como o evidenciado na descida da própria Nossa Senhora à Irmandade, a cada ciclo de sete anos, para dirigir em pessoa os festejos, investida da figura de Procuradora-Geral, celebrando entre os vivos a relatividade da morte. Tais elementos podem ser constatados tanto na simbologia do vestuário, quanto nas comidas de preceito que evidenciam recorrentes ligações entre este (Aiyê) e o outro mundo (Orun), para utilizar aqui duas expressões já incorporadas à linguagem popular da Bahia. Assim como as confrarias, a devoção a Boa Morte foi muito comum na Bahia Colonial e Imperial. Sempre foi uma devoção popular. Na Igreja de Nossa Senhora do Rosário na Barroquinha ela ganhou expressão e consistência.
Aliás, ali era um espaço de notável presença gêge-nagô e as características dos festejos descritos por cronistas como Silva Campos atestam sua semelhança com os praticados ainda hoje em Cachoeira. Deve-se dizer que ali teve origem uma das mais respeitáveis casas de candomblé da Bahia; fundada no século XVIII, a Casa Branca do Engenho Velho da Federação que vem sendo estudada com muito brilhantismo por Renato da Silveira. Devoção popular e mais que isso, racial, na medida em que agregou principalmente negros e mestiços. Suas origens remontam ao Oriente tendo sido adotada por Roma no século VII. Já dois séculos depois a festa da Assunção de Nossa Senhora está disseminada por todo o mundo católico. Trazida de Portugal para o Brasil - onde era conhecida como Nossa senhora de Agosto - ganhou interpretação peculiar, características próprias e por causa disso, a devoção sempre criou atritos com as autoridades da Igreja.
Sua difusão entre a comunidade baiana, entre outras coisas, deveu-se ao fato de que a mediunidade popular característica dos cultos africanos sempre relativizou o problema da morte, na medida em que os adeptos do candomblé acreditam em reencarnações sucessivas. Emprestou, portanto, ao culto originalmente católico elemento do seu sistema de crenças e componentes sócio-históricos da dura realidade escravista que fez do cativeiro sofrível martírio para os que vieram na diáspora. De sorte que a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte passou a ter também um significado social, permitindo a agregação dos escravos, facultando a manutenção de sua religiosidade num ambiente hostil e delimitando um instrumento corporativo de defesa e de valorização do indivíduo, tornando-se, por todas essas razões, um inigualável meio de celebração da vida. Gustavo Falcon (Professor da UFBA e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais)

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